Miséria e coragem
José Alberto Vasconcellos *Com a meticulosidade de um químico, que manipula frações de gramas ou partículas do nada, dona Matilde colocou arroz, feijão e depois um ovo em cada uma das duas marmitas. As quantidades estavam, religiosamente, iguais. Cortou depois um tomate em duas partes, também iguais, e colocou cada uma das metades em uma das marmitas.
Viúva, preparava ali o almoço dos seus dois filhos, um com vinte e outro com dezessete anos, que iam para o trabalho numa construção. Não. Não eram pedreiros, trabalhavam como serventes por diárias, quando havia serviço.
Cada um pegou sua marmita e sua bicicleta, ao saírem ouviram a mão gritar: — Já coloquei sal no tomate! Não voltem tarde, do serviço para casa! Ouviram?
E lá se foram “os homens da casa” que trabalhavam para sustentarem-se e também a mãe, desde que o pai morreu havia cinco anos. Florêncio, o marido de dona Matilde, pai dos moços e de uma moça já casada, morreu esperando um exame do SUS e um vidro de remédio da Prefeitura. Houvesse assistência, seguramente estaria vivo, trabalhando e cuidando da família.
Viveu na miséria, embora tenha trabalhado sem esmorecer por toda a vida. Apenas foi infeliz, em nascer num país onde as pessoas pobres valem pouco e o dinheiro dos impostos têm destino diverso de onde deveria ser aplicado, como na saúde.
Dona Matilde nunca consegue conter as lágrimas sempre que se lembra do marido no corredor do hospital, esticado numa maca esperando atendimento. Já nos últimos momentos da vida, não tinha conseguido em tempo, os exames que o médico recomendara, oito meses antes. Tampouco teve acesso aos remédios que poderiam, pelo menos, dar-lhe mais um tempo de vida, até conseguir fazer os exames especializados e o correspondente tratamento, conforme orientação daquele mesmo médico que, indiferente e enfastiado o atendera no Posto de Saúde.
O Florêncio partiu sem banda de música, sem discursos, num caixão barato e sem flores. Seu corpo foi, na legítima acepção da palavra, enterrado. Pessoas importantes são sepultadas com música, discursos e muitas coroas de flores.
Os insignificantes feitos do Florêncio: trabalhou como burro de carga a vida toda, para melhorar a vida das outras pessoas, m nunca conseguiu, um pouco que fosse, melhorar a própria; sequer conseguiu comprar uma modesta casa para morar. A viúva, sem nenhuma pensão do marido, vivia escorada no trabalho dos filhos, morando de aluguel.
O pouco que os filhos ganhavam, pagos o aluguel, a conta de luz, da água e comprado o gás, quase não apresentava sobras para as demais despesas com alimentação e outras necessidades elementares.
Muito religiosa, dona Matilde vivia resignada com a maldade do mundo: — É a vontade de Deus, que eu viva nessa miséria sem fim. Desde que me entendo por gente, sempre convivi com a necessidade. Meu pai era pobre! Meu marido era pobre! Agora eu e meus filhos somos pobres e temos que lutar cada dia das nossas vidas, do nascer ao por do sol, por um teto e um prato de comida. Graças a Deus que ainda temos saúde, fraca e precária, mas temos!
— Meu marido, coitado, tropicou na saúde. Faltou-lhe comida suficiente para enfrentar o serviço pesado dos dias, dos meses e dos anos em que viveu e trabalhou. Aquele modo de vida despertava em mim, sua esposa, aflição e uma imensa dor por não poder fazer nada para ajudá-lo. Faltou-lhe depois, assistência e os remédios necessários. O reconhecimento por tudo que fez: morreu à míngua de socorro e com fome!
—Ninguém viu nele um ser humano, um filho de Deus carente de comida e de saúde; de uma casa para morar e ali criar sua família!
Assistia razão à dona Matilde. Razão de sobra!
Existe uma faixa de criaturas humanas vivendo abaixo da linha da pobreza. São tratadas como objetos úteis para serem exploradas no trabalho, mas desprezíveis como seres humanos. O costume é antigo: os Belgas, Alemães e Ingleses, na África, na Índia e outros países da Ásia, dizimaram etnias inteiras pelo trabalho escravo e pela fome.
A corrupção nefasta e generalizada esvazia o Erário e balda qualquer boa intenção no sentido de acudir os miseráveis.
Os políticos repartem o butim; os pobres dividem um tomate!
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